quarto 116-a

eu devo ser muito besta ou muito egoísta, ou muito besta e egoísta tudo de uma vez só. acho que me faltou o pingo de altruísmo que vem de fábrica, não que tenha me faltado a compaixão - isso nunca - mas compaixão pensada não chega nem a ser compaixão, ou chega?

estou pagando a língua, como dizia minha irmã, um dia essa língua preta cai. boca praguenta a dela. e se a língua ainda não caiu, a orelha está prestes à, já explico o porque. o problema comigo é que só me importo com o chamado próximo quando estou bom, enquanto estou mau, bom, ai o leonino fala mais alto, olhos só tenho pra mim.

de volta a questão da orelha. fazem três dias hoje que eu estou internado num quarto com três desconhecidos, a situação não vem ao caso - porque o meu objetivo não é me martirizar. daqui de onde estou sentado tenho uma visão geral dos quatro cantos do aposento. a porta bem à frente onde as enfermeiras passam. parênteses, digo enfermeiras, assim no feminino plural, porque os preconceitos têm fundamento - homem enfermeiro é a mesma coisa que mulher enfermeira, frescos, fecha parênteses.
um pouco pra esquerda, na diagonal tem o sujeito que me fez perceber que não passei na fila do altruísmo. não está doente e fica sentado o dia todo, anda só o necessário pra amparar o pai que mais parece uma estátua velha e magra de buda. sempre com as pernas dobradas e cochilando, um pé enfaixado e uma careca idosa. ao filho do buda também é necessário dizer que fala, fala muito, uma voz de caipira genuíno que me lembra meu tio dilo falando.

no canto, mais pra lá do filho do buda, tem o senhor de bigode que até hoje eu não sei o que tem, pelo menos não é aparente, deve ser grave. grave também é a voz dele, sempre que ouço me viro pra certificar meus ouvidos que sei de onde vem aquele som. é uma voz abafada, meio metalizada, no começo achei que estivesse com aqueles tubinhos de respirar pela garganta - mas a voz é dele mesmo. e, enfim, a última das figuras - e a mais estranha - é o nordestino que mora na cama adjacente à minha, olhando assim parece que não tem é nada, mas de noite - quando tira a camisa pra vestir o pijama - posso notar a cicatriz do umbigo até o limite do púbis - intestino na certa. é o mais estranho dos três, está doente e não pára de sorrir. fala pelos cotovelos como se não houvesse lá fora, só esse quarto de hospital. como fala! junta com o filho do velho buda e engata uns papos sobre pescaria, trabalho e religião que eu fico só escutando e desejando não ter de escutar. é do tipo que chama a esposa de muié, como se fosse um objeto, acho de uma ignorância tamanha, mas não falo nada. dos papos deles nada salva, nada. e o que mais irrita é quando usam os diminutivos e aumentativos em lugares errados. o filho do buda acabou de dizer carnona, carnona, onde já se viu... fora quando não engolem o plural das palavras, as menina, as carne, as moça. acho que isso me irrita mais, eu me seguro. me faltou a piedade mas não me faltou o controle. mandar esses velhos à merda - a essa altura do campeonato - não vai adiantar em nada.

como gesticulam esses velhos. parecem dois pescadores bem burros contando uma mentira bem grande sobre a pescaria de ontem. são tipos. o buda velho eu nem conto porque ele mais dorme do que faz qualquer outra coisa. já os outros são uns caipiras, no sentido pejorativo, porque eu sou caipira e não sou burro assim.

mas nem tudo é de todo mal. as enfermeiras - por exemplo - sucetíveis e desprovidas de qualquer emoção e conhecimento que não seja técnico. veja você que uma delas me chamou de culto por estar lendo João Ubaldo Ribeiro - que ela nem sabia quem era, coitada. não a culpo, na verdade encaixo-a na categoria de quem não teve sorte na vida, mas em aspecto algum são como esses chucros que só vivem de passado e falam alto. as coitadas pelo menos sabem pegar uma veia como ninguém, isso tem seu mérito...

murilo.

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  david santoza

10 de dez. de 2008, 00:42:00

você não tem coração, sempre soube.