partes de um encontro

das conversas com J.

3

sentou-se e concluiu que não vinha.
esperou mais alguns minutos para se certificar.
não vinha.
levantou-se para ir e algo lhe chamou a atenção.

[...]

e cruzou os braços atrás do corpo,
balançou-se nos dois pés para frente e para trás.
e lentamente foi-se materializando a figura do homem.

murilo

a lost man

people will ask my impressions of the country.
who i met there.
what the threat is like.
what ordeals.
what i went through.

and I'll reply,
nothing.
I saw nothing.

I simply met a man
who had killed his wife.
how can you show someone
that disconnected from life?

supposing this closed world around us
really is life.


murilo

alívio

dilatou-se
contraiu-se
várias vezes.

pra cima
pra baixo
e de novo pra cima.

e todo o ar deixou de existir
por um minuto inteiro.

murilo

cantiga de amigo

de tão bonito o meu amigo,
qual a crueldade comigo!
não sabe o tanto que atordoa.

é tão bonito o meu amado,
de tamanha crueldade é culpado.
não sabe o tanto que atordoa.

qual a crueldade comigo!
queria tê-lo já conhecido.
não sabe o tanto que atordoa.

de tamanha crueldade é culpado.
por que ter me procurado?
não sabe o tanto que atordoa.

queria tê-lo já conhecido.
o que não foi não pode ter sido.
não sabe o tanto que atordoa.

por que ter me procurado?
aceito tudo de bom grado.
não sabe o tanto que atordoa.

david

partes de um encontro

das conversas com J.

2

_haveria de estar chovendo, fosse o que fosse.
_sim porque assim seria mais fácil de estarmos em lugares públicos.
_sim por causa da nossa falta de habilidade de estarmos onde precisamos estar e quando precisamos estar. portanto nos molharíamos.
_hum, verdade. haveria de estar chovendo.

murilo

partes de um encontro

das conversas com J.

1

e empurrando o carrinho, se distrairia com a música, balbuciaria alguma coisa da letra e, sem olhar pra frente, colidiria com outro carrinho no final do corredor. os condutores se olhariam, num primeiro momento com olhos de susto, e logo depois de espanto:

_você?
_opa!


e uma música muito mais sugestionável começaria a tocar.

murilo

crime bárbaro

muitas facas no peito dele.
muito veneno na bebida dele.
muitos murros no nariz dele.
muitas quedas do corpo dele.
muitos chutes no estômago dele.
muitas pedras na cabeça dele.
muitos carros em cima dele.
muitas quebras de ossos dele.
muitos cortes nos pulsos dele.
muitas balas na cabeça dele.
muitas cordas no pescoço dele.
muitas pílulas na boca dele.
muitas drogas no sangue dele.
muito aperto no coração dele.
muitas mentiras na vida dele.

david

ensaio sobre nada

situação 1:
"nada" usado para indicar a ausência de tudo, que por sua vez é o contrário de nada e indica a presença de todas as coisas menos o nada.

exemplo 1:
o universo, aquela coisa preta que, em algumas pessoas desperta curiosidade e em outras (e aqui me incluo) pavor é basicamente composto de nada.

paradoxo 1:
em primeiro lugar, porque existe uma palavra pra denominar algo que não existe? e se o universo é composto de nada então porque einsten ainda é aclamado como gênio da física pela sua teoria de que a terra pesa sobre o universo, o afunda razoavelmente e por isso temos o que chamamos de gravidade? a terra pesa sobre o que se ali não tem nada?

situação 2:
"nada" usado como nome próprio.

exemplo 2:
nadir se casou com fernando e como todo casal apaixonado se deram apelidos. na e nando. decidiram que se tivessem um filho o nome da criança seria a junção desses dois apelidos. se fosse homem, nado. se fosse mulher, nada. nasceu uma menina.

problemática 2:
a menina subverteria todas as expressões idiomáticas existentes. por exemplo: "não tem nada", ao que ela responderia: "isso foi uma pergunta ou uma afirmativa?", ao que lhe seria respondido: "como assim?", ao que ela diria: "você disse não tem nada, meu nome é nada, ou você afirmou que não tem nada ai ou me perguntou se não tem nada ai", e assim viciosamente.

situação 3:
"nada" usado como verbo na terceira pessoa do singular. ele nada.

exemplo 3:
um homem sentado numa cadeira de rodas acaba de chegar à praia. ninguém o nota porque é feio ficar olhando pras pessoas que não são perfeitas como nós. ele veste um calção de banho, o qual todos pensam ser apenas um traje de praia. lentamente ele se dirige à beira do mar e as pessoas em volta mandam à merda todas as convenções de não olhar pessoas com deficiência por mais de 2 segundos (tempo necessário para perceber que elas tem uma deficiência). e logo depois se joga no mar com cadeira e tudo. surpreendentemente ele sai nadando de braçadas e se duvidar conseguiria até pegar um jacarézinho. as pessoas na margem se perguntam: "ele nada?".

problemática 3:
não existe problemática. o cara é paraplégico e nada, qual o problema? nenhum, porque se tivesse algum eu estaria sendo preconceituoso...

murilo