trava-língua

uma mendiga
mundana e mundrunga
murmurou
uma mandinga maldita.

mandinga
mundana e mundrunga,
murmurou,
a maldita mendiga.

mandinga,
maldita.
mendiga
mundrunga.

murilo

chovendo no molhado.

eu quero toda a chuva para mim. não abro mão nem o guarda-chuva por causa de uma gota de água. não quero para lavar a alma muito menos roupa suja. eu quero cada pingo, respingo, e até menos que o pingo chovendo em mim. quero descer do carro no meio da avenida e deixar o guarda-chuva no porta-luvas. como quem espera pelo par desacompanhado, enquanto desesperado olha os outros guarda-chuvas abrindo em botões, riscando cores e valsas no céu.

 

quero meus cabelos desmontados e encharcados e alagados de um suor frio de inverno. quero meus lábios molhados senão por outros lábios que não os das nuvens. quero minha vida embaçando a janela e o tédio no final da tarde. deixem correr, deixem meu cavalinho na chuva, me deixem pegar uma friagem. quero a chuva toda para mim.

 

as roupas pesadas prendidas ao corpo, a alma escorrida no varal. um corpo só e somente meu, inundado de lágrimas que não são minhas, confundindo-se com mágoas que morrem afogadas no temporal. despenteando pensamentos, levando meu presente para o quintal do passado. não avanço uma poça longe daqui. deixo-me magoar, deixo-me molhar por suas palavras. as minhas mãos que bebiam do seu corpo, agora matam a sede na calçada.

 

vou fazer da minha felicidade solitária, minha tempestade no seu copo de água.

 

gustavo.

10 itens ou menos.

as revoluções em toda história nunca foram feitas de princípios ou ideologia. ninguém coloca um pé para fora de casa por um simbolismo impalpável ou uma sensação de desconforto de espírito. entretanto, uma dispensa vazia é motivo suficiente para deixar qualquer estômago roncando rebeliões e bocas salivando revolução. barriga vazia, casa do diabo. napoleão foi destruindo meia europa até portugal por causa de um pastelzinho de belém; hitler fez um escarcéu em paris porque adorava uma baguete; alexandre, o grande deixaria seu império ir à baixo se não fosse uma porção de quibe cru e tabule. eu faria por bem menos.

 

mas nem um grande conquistador ou líder militar de poltrona, avança suas tropas sem um plano. é preciso armar o cavalo de batalha e o carrinho de compras. é neste momento que se desencostam as tias bovinas e gordas de suas suadas e mofadas poltronas, desligam-se os aparelhos de televisão sintonizados religiosamente ao “vale a pena ver de novo”, e se posiciona todas as aquelas arrobas, massa mórbida e crônica, ruminando no banco do passageiro. não há receio nenhum também em pedir a criança recém - nascida da sobrinha ou da vizinha libidinosa / burra ou rampeira / inconseqüente. tudo para angariar territórios e posições no estacionamento e nas filas do caixa rápido do mercado. não custa nada, não se perde nada. consciência não pesa na compra do mês.

 

se for vaga a consciência, o oposto se diz ao estacionamento. cada espaço e lacuna são disputados. existe certo pesar ao passar pela vaga dos deficientes físicos; sente-se resignado ou culpado por ocupar aquele espaço. eu não me sinto nem tão culpado ou fatigado para simular uma cãibra sequer. diferentes dos hipócritas que deixam seus escrúpulos pesarem na consciência e na perna, atrofiando-a aos olhos dos mesmos judas do caixa-rápido.

 

os ocupantes do caixa-rápido são verdadeiros desgraçados. não digo pelo mau-humor em promoção anunciado em todos os corredores nem pela expressão bestial de felicidade a cada novo cliente que se submete a sua presença. os humores passam rápidos e nada valem entre os itens no carrinho.

 

rápido demais. os itens desfilam das prateleiras às mãos dos caixas e logo estão no carrinho alheio. é uma relação promíscua e lacônica. por curtos momentos elas têm toda sorte de produtos importados e mesmos aqueles ordinários que parecem tão essenciais ao escorrer pelas suas mãos. em outro momento, os olhos se perdem e as mãos automáticas que não seguem o pensamento e o desejo. eles os tocam, os vêem, mas não os terão. então, sobram julgamentos e olhos gananciosos sob os preços e mercadorias. mas isso não paga a minha conta nem a cota de sarcasmo do caixa. não, não, isso não basta, é preciso sacanear.

 

“moço, preciso confirmar o preço da mercadoria com o chefe da seção, ok?” neste momento, coloca o microfone na altura da boca, e contra meu ego. “atenção todos os caixas, confirmando preço de pomada para prurido anal e preservativo johnson & johnson, repito, pomada para prurido anal e preservativo johnson & johnson. caixa sete, pomada para prurido anal, camisinha baby.”. é como se por um momento o mundo inteiro soubesse que tenho um pênis pequeno, que tenho coceiras abomináveis no reto. é, e eles ficam sabendo.

 

porque ainda que vencidos os preconceitos e as compras no mercado ninguém deixa de comprar nada, ninguém deixa de julgar nada. o raciocínio em oferta de que você é o que você compra ou você é o que você come – ou quem você come – é pesado, é medido; na hora, no caixa. cremes vaginais, pomadas por feridas de fricção, camisinhas tamanho bebê. tudo vende caráter. compramos e coletamos egos duplicados nas gôndolas, corremos um corredor de espelhos onde o produto à venda é nossa imagem e semelhança. estamos nus nas filas dos caixas, empurramos carrinhos abarrotados de sósias em pêlo. por isso não recrimino o prazer das caixas de mercado. estou na mesma prateleira que elas. não deixo de julgar um livro pela capa, uma mulher pelos sapatos ou um homem pelo pênis.

 

a moral vale quanto pesa e ninguém gosta de carregar peso nas sacolas.

 

então, sem peso nas mãos ou na consciência, tiro as chaves tilintando do bolso e vou embora. não finjo síndrome de down e não faço caras e bocas. não sou do teatro, não gosto de teatro, não tenho paciência para artes cênicas. nunca entendi ou esforcei-me para compreender o significado de uma peça, de ir à merda ou quebrar uma perna, ainda que o tenha feito com uma freqüência absurda e literal no palco à italiana dos relacionamentos. dada a estréia sem luzes ou bravo, o talento ao fracasso, não traço linhas ou marco espaços com a perna. não consigo fingir, não me contenho ao dissimular e me desfaço: sou perfeito, sou bonito e não sou coxo – quebrei as pernas e fui à merda com a metáfora de machado. aproveite o lote, brás cubas.

 

entro no carro sem o menor indício de resfriado ou mal-maior. nem ao menos tento puxar uma perna. a única coisa que arrasto é um carrinho abarrotado de compras e uma humanidade leprosa, que vai rasgando as sacolas e deixando pedaços de caráter até ao carro mediocremente estacionado na vaga reservada a minha situação: deficiente moral.

 

gustavo.

digno de nota.

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1. uma dúzia de ovos há serem devolvidos em uma série fordista e brutal para a cloaca da galinha gorda do caixa 2 que não sabe fazer conta porque matava aula para transar com o inspetor da escola. r$ 3,32.

 

2. um maço de cigarros marlboro light, 20 cigarros de filtro longo, todos apagados cuidadosamente no mamilo do empacotador virgem e mórbido que olha desconfiado e com reais dúvidas quanto ao número e ao uso das camisinhas que coloca na minha sacola. quem dera que a intimidade que ele divide com a comida, ele tivesse com o pênis. r$3,00.

 

3. uma garrafa de leite parmalat, um litro, inteiro ejaculado na boca da vaca prenha e solteira com um bezerro a tira-colo, que adora fazer a íntima com o mais novo e seboso gerente de caixa do mercado. r$ 2,09.

 

4. uma caixa de balas tic-tac, 35 pastilhas mentoladas em média, gradualmente depositadas no reto do tio patinhas de merda à minha frente, que parece desfrutar da mesma paciência e masoquismo que eu por não entender o conceito de caixa rápido, e assim pensa não ser nada demais trazer um galão de moedas para pagar a compra do mês. r$ 1,50.

 

5. um quilo de peixe, bacalhau português, friccionados contra a genitália escura e fedida do bicho-pau atrás de mim, vestindo papel celofane roxo e calcinha bege bordada em saco de ração. r$ 54, 89.

 

6. uma garrafa de vinho chileno, para beber enquanto estes pobres imbecis se matam na minha frente pela atenção da caixa, que sua como uma porca e arrebenta os botões da camisa amarela e amassada só com os pensamentos de gordinha triste e mal-comida. quando terminá-la, eu irei quebrá-la na cabeça enorme e gorda da caixa e chamar toda a atenção para mim. r$ 31,10.

 

total: r$ 95, 90

 

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- posso pagar com o corpo?

- não aceitamos pessoas sujas na praça.

- vou te passar um cheque.

- ok.

 

 

gustavo.