o ponto do abate

o espelho mostrava o de sempre, o de toda manhã. um par de coxas finas, um par de pernas mais finas ainda que as coxas, um quadril franzino e um toráx com um quê de somaliano de onde se desprendiam duas longas tiras de pele que a ciência denominava braços ou membros superiores (que de superiores só tinham mesmo a posição). tudo isso mais a barba rala e a cara cansada. não importava em que espelho ou de que ângulo olhasse, a imagem continuava ali encarando-o com a mesma cara e as mesmas pernas. era assim todo dia, no quarto, no elevador onde a imagem o saudava com um adeusinho tímido e no carro, pelo retrovisor.

acostumado a tal condição não se importava mais que os ossos do quadril formassem pontas nem que os cotovelos parecessem esquadros, era tudo uma questão de escondê-los. por isso jamais frequentara praias de nudismo e nunca usara uma sunga, dadas as circunstâncias o melhor era mesmo um bom par de jeans e uma camiseta pra cobrir o que restou de massa. no entanto, esse também não era um trabalho fácil. era demasiado alto para não ser notado e os braços (ah! os braços) não negavam a magreza. se vestia uma camiseta sem mangas parecia um hidrante com duas mangueiras de bombeiro; se vestia uma camiseta de mangas longas parecia qualquer outra coisa igualmente comprida e magra.

um dia, olhando-se no espelho como fazia toda manhã antes do trabalho, percebeu algo que o incomodou e que não havia notado até então: como era grande seu pescoço! esticado como se alguém, enquanto ele dormia, secretamente puxasse sua cabeça para cima, cada dia um pouco até que ele finalmente começasse a crescer. só podia! não havia outra explicação, afinal de contas, não se lembrava de ter tanto pescoço ontem e, no entanto, ali estava o maldito a se esgueirar pelas beiradas do espelho.

nesse dia não conseguiu trabalhar. ficou pensando em pescoços, reparando nos colegas para ver se podia se confortar e encontrar uma girafa de escritório que pudesse lhe fazer compania ou lhe dar um conselho. nada, absolutamente nada. a savana estava deserta. definitivamente havia rinocerontes como o Silveira da contabilidade com seu nariz adunco e seu porte gordo; elefantes como o Marquinho do xerox que ele acreditava jamais ter levantado daquela cadeira e leões feito o Rubens que jurava um dia ter sido alterofilista, mas definitivamente nenhuma girafa. nenhum irmão igualmente pescoçudo, nenhuma mulher girafa africana que pudesse confortar a angústia de se sentir uma espécie em extinção, ou pior: um erro na cadeia evolutiva.

à noite sonhou com o crescimento exagerado do seu pescoço. imaginou que um duende vinha secretamente esticá-lo todas as noites logo após cair no sono (ele estava certo!), esticava-o durante horas a fio. até que um dia não conseguiu mais sustentá-lo e se viu arrastanto-o no chão no caminho até o escritório. imaginou-se como uma comprida tora de borracha mole, uma minhoca exageradamente grande esgueirando-se feito uma cobra cega por becos. e agora? o que os colegas de escritório iam pensar? o que o elefante do xerox vai dizer? espera... elefante? é isso!, pensou. é isso! e acordou coberto de suor com os imensos braços enrrolados em volta do pescoço.

acordou com torcicolo mas deixou de lado a idéia do duende, embora o torcicolo pudesse explicá-la perfeitamente, tinha uma idéia na cabeça e precisava anotá-la antes que lhe fugisse. mas o que era mesmo que tinha pensado enquanto dormia? alguma coisa com o Marquinho do xerox, alguma comparação, humm, deixe-me ver, ah! elefante!

decidira-se! engordaria! engordaria até que a banha enchesse todo o excesso de pele, feito a avó quando fazia chouriço enchendo as tripas de porco antes finas e moles até se tornarem grandes e viçosas. como ia fazê-lo ainda não sabia, mas isso não era segredo, mandar tudo o que visse pela frente já era um bom começo. ele que sempre fora de comer pouco, não por dieta; mas sim por hábito, agora comeria de tudo. abandonaria as saladas de que tanto gostava e partiria mesmo é pra batata e pros pães. na sua cabeça já era hora do dinossauro de pescoço comprido tornar-se tiranossauro rex, embora tivesse certeza de que os dois passavam bem longe um do outro na escala evolutiva.

naquela tarde os colegas se espantaram ao verem um imenso prato onde antes existia apenas algumas folhas e duas colheres de arroz e uma de feijão. comeu tudo com gosto, ou melhor, fingiu gosto. depois da terceira colheirada o estômago desacostumado e o metabolismo rápido imediatamente iniciaram um processo de entupimento que ele disfarçou com um sorriso meio amarelo (isso aqui está uma delícia!) na mesa da lanchonete da empresa. entre as conversas com Geraldo (o secretário da mesa ao lado, que, pela cara, não estava entendendo nada do que acontecia) e os imensos goles de suco pra lubrificar a garganta, engoliu tudo, não sobrou um grão de arroz.

sentiu-se mal o resto do expediente todo. tinha vontade de vomitar mas não o faria, do contrário todos os carboidratos e as proteínas se esvairiam privada abaixo. controlou-se. às seis da tarde, pouco antes de bater o cartão do ponto, foi acometido de uma feroz vontade de ir ao banheiro mas, novamente, controlou-se. estava decidido à absorver cada molécula que pudesse lhe acrescentar alguns quilos.

e assim seguiu-se a dieta da engorda durante várias semanas. tirando a constipação e o mal estar após cada refeição estava bem, mas o peso ainda continuava insatisfatório. o pescoço, as pernas, as coxas e os braços continuavam finos e a barba rala estava ainda mais rala e cansada. engordara, isso é fato, mas não a quantidade que precisava para sumir com toda aquela magreza.

não desanimou. o efeito é à longo prazo, pensou consigo e meio que instintivamente continuou a comer feito uma draga ignorando os impulsos do estômago que se recusava a dilatar para receber mais uma colher de comida. por seis meses comeu feito um porco, tudo de mais calórico, tudo de mais gorduroso até que o coração não agüentou a dieta.

deu entrada às seis da tarde no hospital municipal trazido pelo amigo Geraldo que, em meio aos berros dos colegas tentava resgatá-lo de se afogar no próprio prato de feijão que ele insitira em pedir no happy hour. parada cardíaca. o colesterol estava nas alturas. o fígado também não estava bem e as artérias indicavam o início de um entupimento geral. o médico não deu esperanças e muito menos explicou o porque da pane. Geraldo não parava de se perguntar como uma pessoa magrela podia morrer de problema de gordo. se fosse o Marquinho talvez sim.

deitado na cama, semi-consciente, imaginou-se numa savana aberta (devia estar delirando por causa do remédio). suou frio. vislumbrou um bando de girafas que corriam soltas e selvagens por dentre as árvores esparças. percebeu como eram graciosas com suas pernas esticadas e seus longos pescoços inclinando-se para frente de modo a cortar o vento e diminuir seu atrito. percebeu que não estava sozinho e desejou com todas as forças que pudesse correr entre elas. tentou inutilmente mexer as pernas, mas isso só fez com que o pi pi pi do monitor ao qual estava conectado esguelasse para todo o hospital e alarmasse ainda mais um afoito Geraldo que veio correndo à cama sussurando "sossega ai camarada, o médico disse pra não se mexer".

o coração parou às oito da noite do mesmo dia. Geraldo deu a notícia no escritório, por telefone, com a voz meio engrolada. disse que o médico não explicou direito, parece que morreu de tanto comer.

murilo

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  Davi Rocha

20 de dez. de 2008, 01:53:00

coitado do moço, devia ser tão recatado, porém tão simpático !