paciente: gustavo c. stevanato

diagnóstico: pessimista, preguiçoso, cínico, ranzinza, rude, com desvios graves de caráter, dissimulado, sexualmente ativo, mentiroso, pseudo-intelectual vanguardista, nada confiável, fígado corroído, uma fraude crônica.

2:30: o médico já assinou consigo mesmo o tratado que apenas esse paciente – no caso o idiota que vos fala – o separa do cigarro. então, vamos ser práticos. mão no queixo, coça a cabeça, cerra os olhos, tira os óculos, saliva, saliva, saliva, morde o lábio de baixo, um grunhido qualquer de quem está dominando a situação e pronto. diagnóstico feito e ironia marcada: “você não parece que está com muita dor”. “mas estou com dor, sim” – essa é a resposta combinada pelo contrato social envolvendo minha educação e bom senso com a medicina. mas recolhendo o desaforo já guardado no bolso esquerdo da calça, pensei: “doutor, eu preciso estar pincelado com magenta e verde para o senhor entender que estou mal? eu não estou com ebola ou tifo. estou com dor no maxilar e muita dor de ouvido. se faz necessária uma necrose facial para o doutor entender que não me sinto bem? dê-me um remédio para isso e vou embora sem compromisso de retorno ou mágoas. e ficamos quites. o senhor finge que me tratou com excelência e eu finjo que estou satisfeito com seu diagnóstico. pode ser?” claro, terminado o pensamento, escorrido o veneno, o momento escapou-me entre os dedos. levaria o desaforo e o troco do café para casa.

3.20: chego à outra sala para tomar uma injeção – não fui embora ainda porque não existem visitas rápidas ao hospital, ou você demora a vida ou a deixa por lá mesmo, engavetada em cova rasa. o interessante é que não se aplicam mais injeções. agora, incluídos no avanço tecnológico – ou na falta de recursos – os medicamentos são aplicados via soro. o que aconteceram com as enfermeiras braçudas e grosseiras e tatuadas, com as agulhas e todo momento de tensão e psicose ao se aproximarem de uma veia? será que a vigilância sanitária descobriu que as estagiárias compartilham agulhas e as aboliram do hospital? claro, desfazendo a ambigüidade e sonho, as agulhas. não foi possível evitar o confronto com o brutamonte de traços de concreto desfeito, paralelepípedo trincado. dirijo-me a sala procurando a cadeira elétrica ou tripé de soro mais firme para se enforcar. não os vejo. apenas poltronas confortáveis a minha frente, pessoas desconfortantes do meu lado. velhos, muitos velhos. estou bem perto da morte, diria na verdade, ao lado, dividindo ombros. o universo igualava os anos de vida e poeira acumulada no espaço. orelhas e olhos distendidos pela gravidade dos anos. e bocas, muitas bocas duelando com a capacidade de bater os dentes amarelos e podres escorrendo saliva e veneno. como eu queria que aquela sala fosse uma câmara de gás. por um momento, achei que seria imune ao banho tóxico de expiração nítrica. e naquela altura a morte não seria um problema – pelo menos para eles. eu faço questão de quando tingir as cãs nas têmporas, morrer, sem cerimônia alguma. eu deixo a corda correr solta durante o mesmo momento que confesso essa morbidez. se já conto vinte anos, outros vinte - talvez estes mais cinco – se fariam suficientes. não preciso ficar velho para me dar conta que sou chato e ranzinza e reclamo da vida. tenho espelho em casa e informantes constantes atentos a cada passo dado, a cada gota de veneno borrifado. então, dali para frente – marcado pelo momento histórico p.m (pós-mim), pelo menos em minhas notas fúnebres assim estará - podem chamar os carrascos, anunciar o dilúvio, atiçarem os gafanhotos, eu não a mínima. não estarei mais na platéia. podem continuar se desintegrando à vontade com o resto de pó no canto da sala. vou para o raio-x. e desculpem-me pela bagunça.

4.15: sentado na sala de espera. simplesmente me acomodo na cadeira de pés agudos de ferro como se fosse berço esplêndido sem som do mar e com a luz do sol do céu profundo na cara. assim mesmo, sem óculos de sol retro chic, protetor ou bronzeador solar fator 40, bola colorida ou garota de ipanema me dando mole na beira da praia. mesmo nestas condições, odiaria tudo, porque detesto praia. descanso meus ossos em posição cômoda, exceto o maxilar que dorme de mau-jeito. preciso distrair. relaxar. cigarros? os fumantes se reúnem na oncologia, mas não tem mais nada aceso por lá. então vou queimar as pessoas, acender meu ódio. trago os olhos fora de foco para a figura de quem chega. mulher, 45 anos, vestidinho de lavadeira, sorrisinho de puta. a moça do outro lado do balcão, “qual o endereço?”, eu respondo: “ no olho do inferno, aluguei um puxadinho na casa do diabo, com vista para a praia grande, sua vadia”. na verdade, era mais longe. 3 ônibus, 7 quadras, e uma reza forte para não chover e alagar tudo. chamam meu nome. agora vão ver se sou amargo até os ossos mesmo.

5.15: fui para o nada, tomei soro no almoxarifado, tirei um negativo em tábua rasa e em cova fria, e voltei para o lugar nenhum. o médico, agora, um clínico geral. um clínico geral tem a mesma função que o balcão de informações: dizer que você está errado e o que você procura não está ali. “doutor, eu acho que meu maxilar está fora do lugar”. “não, não é isso não. deixa eu te explicar. não é minha especialidade, mas posso te indicar outro médico para te analisar e dar um diagnóstico mais preciso”. “mas doutor, eu não consigo falar e minha boca está sangrando. o senhor tem certeza que não é aqui na boca?”. “não sabemos e ainda não podemos ter certeza de nada. pode ser um pêlo encravado ou um pé quebrado. não podemos afirmar nada”.
enquanto isso, vou bebendo café de água de calha, folheando a manchete, conhecendo pessoas novas, gente bonita, doente, catatônica, com fratura exposta ou rasgada de fora a fora. adoro. ficarei aqui esperando um médico com especialidade em pessoas, para desintoxicar meu brio e colocar ataduras no meu ego. e torcendo para não ter contraído varíola.

gustavo

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  dany

22 de nov. de 2008, 20:18:00

quantas vezes já não quis chutar tudo do hospital, mandar o clínico cínico geral tomar naquele lugar e perguntar pra enfermeira que só quer saber da fofoca da funcionária do outro corredor se ela não estava precisando de um soro também.